sábado, abril 05, 2008

O vinho branco Belvedere Um lindo final de semana!


 
 
O vinho branco
 
Belvedere Bruno

Sentado na cadeira que pertenceu a várias gerações da família, faço o inventário de minha vida. O que fiz com ela? Percorri os caminhos que deveria,ou  preferi atalhos? Aos noventa anos, já não tenho como modificar meus  traçados, equívocos,  rezas tortas...
Sozinho, miro o firmamento.  O ser humano envelhece, se encarquilha, mas, se  não houver a  mão do homem, os cenários  da natureza nunca se desfiguram.
   Gosto do vinho branco seco. Me traz paz à  alma.
 Meus filhos já se foram. Triste foi a morte da mais novinha, Mariazinha da Conceição, que a tuberculose levou. Coloquei  nela uma roupa branca com  véu cobrindo o rosto, e  um terço entre as mãos. Nunca mais  consegui sorrir como antes. Meu riso ficou preso.
 A mulher envelheceu antes do tempo, foi murchando, sequer notou a ida dos filhos. Sofri  a dor  da morte  dos  cinco, enquanto ela ia  se  encolhendo na cama, me deixando só. Uma tarde, sorriu , olhou para o teto suspirando e morreu. Nem senti falta, porque, na verdade, ela  já havia morrido há   trinta anos.
Fiquei neste casarão sozinho . Não gosto de estranhos, nem preciso que cuidem de mim, pois tenho pernas e braços. Monto a cavalo, cozinho, lavo e passo.Empregado é pra cuidar dos bichos , da terra e do trabalho pesado da casa.
Cheguei a pensar numa nova companheira, mas desisti. Nasci pra ser só. Não gosto de vozerios,  confusões, e as pessoas sempre trazem essas coisas.
Os vizinhos moram longe. De quando em vez, recebo visita.  Trazem compotas de frutas , vinhos, pão de aveia.  Não gosto de desfeitear, e aceito ,mas  digo que  visita não pode passar de meia hora.    
  O que a vida ainda quer de mim?
Rasguei todas as fotos que havia por  aqui. Quem  ficaria com elas após  minha morte? Não tenho herdeiros,  os vizinhos   acham   pecado queimar  lembranças , e as fotos ,dizem que têm alma...  Já doei todos os objetos de valor para a igreja. Meu maior apego é com aquele Sagrado Coração de Jesus em louça que tenho na parede da sala .Ainda  não sei  o que fazer com a casa.  Tenho tempo pra pensar. 
  Leio muito bem, nenhum problema pra enxergar,  nunca fui a médico, tenho uma saúde de ferro, mas um dia virá o sono eterno.Para onde vou ?  Como será a morte? Penso que  acordarei no céu, vendo  meus cinco filhos, mas  por conta do que Conchita  me fez, peço a Deus Todo Poderoso que me livre dela na outra vida.    Que continue  encolhida no  além...
 Vou tomar uma  tacinha  de vinho pra me ajudar a dormir . Os fantasmas às  vezes aparecem e me tiram o sono. Nunca matei ninguém, apenas dei ordens.Cada cabra safado que encontrei na vida !..  Chegaram a matar dois de meus filhos. Dei idéia para queimarem eles. Sobrou só pó. Ri e joguei no charco.  Quem sabe eles  agora cismaram?  Deixa isso pra lá!  Tô velho demais pra me preocupar com esses assuntos.
Não sei por que ainda estou por aqui.  Acordo, fico o dia todo olhando a paisagem, como, escuto rádio, ponho uns discos que  já estão chiando  de tão velhos... Que cansaço anda batendo  em mim   ao cair da tarde! Me enrosco nas cobertas e vou dormir.
São cinco horas e ainda há sol. Vou tomar meu vinhozinho branco, ler meu livro de rezas, depois  dormir na santa  paz.
  Nunca gostei de  vinho tinto, por me lembrar sangue.
  Que canseira me deu  de repente, que sonolência estranha... Sinto frio, arrepios. Meus olhos se embaçam, pareço ver  vultos,  mas nunca tive problema de visão...
 
 Estilhaços  de garrafas e  taças  compunham o cenário final  do inventário daquele homem.
 
 
 
 

Belvedere Bruno [Cônsul - Niterói - Z-Sul-RJ] Poetas del Mundo
Niterói - Brasil
 
 

 


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